15.5.12

A Mala dos Sentimentos


Dentro daquela mala havia todo tipo possível de sentimentos. Raiva, paixão, ódio, entre outros. Havia sonhos também. Abri a mala e peguei um pouco de compaixão. Fui andando por todos os tipos de lugares, carregando a compaixão numa mão e a pesada mala de sentimentos na outra. A compaixão crescia e logo se tornava pesada também, o que fazia com que eu distribuísse um pouco dela a cada pessoa que via passar a meu lado.


Caminhei numa avenida lotada de pessoas, gente de todos os tipos, pessoas animadas, pessoas tristes, negros, amarelos, brancos... Sempre gostei muito de gente, portanto, adorava aquilo, aquela agitação matinal. Guardei a compaixão na mala e peguei a alegria, que cintilava cada vez mais. A alegria me fez sorrir. Eu passava pra todos a minha alegria, fazendo com que todos sorrissem também. A alegria tinha um colorido, que me lembrava muito o brilho de fogos de artifício que todos soltam em cada fim de ano e início de outro.

A avenida lotada deu lugar a uma estrada larga repleta de terra batida em volta. Conforme os poucos carros passavam, e também o vento vinha, a poeira subia, fazendo com que eu guardasse a alegria na mala e pegasse a nostalgia. Parei na estrada e olhei para trás, vendo todo aquele brilho de cidade em festa bem ao longe. Eu não mais pertencia àquele lugar. Suspirei e percebi o quanto estava exausta. Porém eu não podia parar de caminhar.

Continuei andando, tendo em mente meu único rumo. Suspirei novamente e guardei a nostalgia na mala, dando lugar à melancolia. Eu estava completamente sozinha, andando desde manhã, e agora já era tarde. O sol não estava mais à pino, mas ainda assim esquentava absurdamente. Eu suava, e algumas teimosas lágrimas misturavam-se com esse suor. Eu não gostava de estar sozinha... Eu queria ter alguém por perto, que compartilhasse comigo essa vida nômade. Que simplesmente me ajudasse a carregar aquela mala pesadíssima de sentimentos. Chorei.

A estrada de terra batida deu lugar a um pequeno vilarejo, com pequenas casas de madeira por todo lado. Aquele vilarejo me fez sorrir, sua calmaria fizera-me perceber que aquele sim era meu verdadeiro lugar. Um lugar fixo, eu finalmente poderia parar de andar. Mas eu não tinha nada comigo, a não ser aquela mala carregada de sentimentos e as roupas do corpo. Eu precisava de um lugar para ficar.

De casa em casa eu batia e pedia abrigo e comida, mas quase sempre me era recusado. Bati numa casinha verde musgo com o telhado meio surrado.

– Não dou abrigo a pessoas como você! – guardei a melancolia e peguei então a raiva. E que tipo de pessoa era eu? Eu só estava pedindo abrigo, um lugar para me proteger do frio e da chuva que chegariam a seguir! Eu não a estava assaltando, roubando sua casa, só estava pedindo!

Bati em outra porta, uma casinha amarela meio suja de lodo nas portas, e uma senhorinha muito simpática me deu lugar. Substituí a raiva em minha mão, por piedade.

– Obrigada, senhora.
– Por nada, querida... Fique aqui com meu filho, vou comprar comida na Mercearia.

Sentei-me no sofá e deixei a mala ali, a meu lado. O filho da senhorinha estava sentado a minha frente, na poltrona velha de cor vermelha. Um silêncio pairou. Tirei da mala o constrangimento.

– Então, você vem de muito longe?
– Sim, senhor. Passei o dia caminhando, sem comida nem água, e nem mesmo um pouco de descanso.
– Então só está parando agora? – levantou-se da poltrona e veio em minha direção.
– Sim, senhor.
– Você deve estar buscando um pouco de diversão... Você sabe, para relaxar... – jogou-se por cima de mim, tentando abusar-me. Eu não tinha mais tantas forças, então estiquei minha mão e puxei de lá o ódio. Com forças suficientes, joguei-o na cara do homem, que sentia o ácido do ódio queimando seus olhos. Afastou-se gritando e então expulsou-me de sua casa.

Corrida como um cão sarnento, saí da casa do homem e da senhorinha. Fui andando até a porta de um estabelecimento qualquer que estava abandonado e lá sentei. Tirei a tristeza e o abandono da mala e comecei a chorar. Chorava por estar sozinha, por ter sido escorraçada, por simplesmente medo e também por vergonha. Tantos sentimentos ruins ao mesmo tempo.
Senti a aproximação de alguém e tirei a rispidez da mala. Afastei-me ao toque em meu ombro e rosnei ordenando que não me tocasse. Escondendo o rosto em meus braços, olhei pelo vão da camisa e vi um sorriso cintilante.

– Acalme-se... Posso ajuda-la? – perguntou-me com uma voz muito doce.
– Não! – gritei rispidamente e saí correndo, arrastando a mala atrás de mim.

Quase no fim do vilarejo, no alto de uma pequena inclinação, havia uma casinha branca muito pequena. Estava com as portas abertas. Tirei de dentro da mala o embaraço e fui caminhando lentamente para dentro da residência.

– Há alguém aí? – murmurei. – Alguém? – perguntei. Percebi que havia sobre o fogão de lenha algumas panelas velhas, e, faminta como eu estava, notei um cheiro de comida maravilhosamente bom. Arrastei a mala comigo até o fogão e peguei um pequeno pote de barro que estava ao lado. Havia uma Sopa de Letrinhas Mágicas na panela maior. Peguei um pouco dela e alcancei uma colher na pia. Sempre com a mala, arrastei-a até o lado da mesa e sentei, comendo ardorosamente.
– Está boa essa sopa? – perguntou-me o dono da voz doce e da casinha. Engasguei e comecei a tossir.

O homem veio em minha direção lentamente, sorrindo. Tirei o medo da mala e fiquei preparada para atacá-lo.

– Hey... Calma, só quero ajuda-la, mocinha. Você está com um machucado na testa, e precisa de um banho. Há um banheiro no quartinho dos fundos, você poderá usá-lo quando acabar de comer. E se quiser descansar, arrumarei a cama para você. Só peço que não tenha medo de mim... Só quero ajudar você a tirar essa angústia das mãos.

Eu não havia percebido... Mas o caminho inteiro, desde quando saí pela manhã, até agora nessa madrugada, eu havia carregado um peso maior ainda nas mãos: a angústia. Sorri fracamente para o homem. Ninguém via os meus sentimentos, mas... ele viu.

Após comer duas cumbucas da Sopa de Letrinhas Mágicas, fui tomar um banho e tirar o medo de mim, que já estava impregnado em minha pele. Após o banho, vesti roupas limpas, que o homem emprestara para mim. Eram do meu tamanho. Eu ia deitar-me, mas então ele chamou-me na sala.

– Mocinha, eu tenho uma coisa pra te mostrar! – corri até a sala, arrastando as meias (as únicas coisas grandes que eu usava). Quando cheguei na sala, vi o homem de pé.
– Sim, senhor?
– Venha comigo até aqui, mocinha.
– Para onde, senhor?
– Meu quarto.

Uma nova onda de um novo medo veio em minhas mãos e percorreu meu ser. Eu seria atacada novamente, teria meu coração partido novamente?

– Calma. – disse ele tocando meu ombro, percebendo minha hesitação. Pegou minha mão entre as dele e me levou até seu quarto, caminhando como se estivesse flutuando. – Espere. – murmurou. – Aqui. – apontou para um guarda-roupa velho. – Aqui está minha mala.

Quando ele abriu o guarda-roupa, surpreendi-me. Sua bagagem era maior que a minha, havia muito mais sentimentos ali dentro.

– Sabe sua angústia? – perguntou-me.
– O que tem ela? – franzi as sobrancelhas.
– Eu a tomei de você... Espero que não se importe. – sorriu fracamente.

Abri a boca e arregalei os olhos. Que audácia, pensei, como pôde tirar a minha angústia de mim? Eu estava ligeiramente indignada, mas não falei nada. Logo em seguida a indignação voltou para a mala, dando lugar à compreensão.

– Eu não me importo... Mas o que fez com ela? – indaguei.
– Eu guardei dentro de minha mala... Não queria mais que você sentisse essa dor, então a tirei de você e guardei-a bem longe.
– Jogue-a fora, por favor... Não quero que fique com minha angústia para você.

O homem tomou minhas mãos entre as dele e eu me senti aquecida. Percebi que o sentimento de empatia saiu sozinho de dentro da mala e veio parar ao nosso lado. Coloquei-me no lugar dele, e ele colocou-se no meu.

– Qualquer dor que você sinta, me atingirá. Se sua angústia estiver longe de você, então estará longe de mim também. Venho sentindo o mesmo que você desde muito antes de tê-la conhecido, mas ninguém nunca soube de nada... Só quando você chegou foi que percebi o quanto somos semelhantes.

Foi isso o que li em vários livros antes de iniciar minha caminhada. Almas irmãs, almas gêmeas, almas perdidas que se encontram e se envolvem. Pois então, num surto de magia, uma luz vermelha saiu de dentro de nosso peito – tanto o dele quanto o meu. Envolveu a sala numa explosão e, quando dei por mim, estava-o beijando. E o mais incrível, ele estava me beijando também.

E então percebi... A luz vermelha, cintilante e perfumada que havia nos envolvido, era nada mais que meu rumo que havia sido achado. Encontrei o sentimento que faltava em minha mala.

Encontrei o amor.

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